A dor lombar numa visão Holística

  • Escrito por Nuno
  • 14 de Dezembro, 2022

Este artigo tem como objetivo permitir uma compreensão mais holística da dor lombar e o que podemos ter em consideração no processo de reabilitação da mesma, numa perspetiva um pouco mais técnica (mas não exagerada) e direcionada a profissionais da Educação Física e Fisioterapia, ou quem procura compreender um pouco mais este tema.

A dor é um fenómeno extremamente complexo e, para a compreendermos melhor, é importante percebermos o que distingue um sistema reducionista de um sistema complexo e como podemos/devemos pensar no movimento tendo em conta a complexidade. Referimos assim 5 aspetos que devemos de ter em consideração no processo de reabilitação da dor lombar.

Sistema Reducionista VS Sistema Complexo
Tabela Lombar 1
O movimento numa visão complexa

Movimento é a dissociação de segmentos corporais no espaço, independente da direção, altura, velocidade e contexto. No fundo é como o nosso sistema apresenta uma resposta às tarefas/desafios do dia-a-dia, sejam eles trocar um objeto de sítio, deslocarmo-nos de um ponto A a um ponto B ou, por exemplo, ultrapassar uma barreira. É necessário ter sempre em conta o seu funcionamento como um todo e não por partes, dando atenção aos “ruídos” e à variabilidade do nosso sistema e compreendendo que este se comporta de forma não-linear e imprevisível (como falado na tabela acima).

Não podemos deixar de considerar que o movimento também acontece em ações isométricas (ações onde a carga externa que necessita de ser vencida e a força produzida pelo movimento são iguais e por isso a velocidade de deslocamento é 0). Por exemplo, quando estamos parados em pé. E isto não deixa de ser movimento.

Movimento eficaz e eficiente

Para o nosso sistema apresentar um movimento eficaz (que atinge o resultado) e eficiente (com o mínimo de gasto energético) é importante que as diferentes estruturas estejam funcionais (apresentem qualidade na sua função natural e robustez na perturbação). Se isto não acontecer, através de processos de auto-organização o sistema vai encontrar outras estruturas/tecidos que possam “compensar” a falta de “funcionalidade” dessa mesma estrutura.

A longo prazo isto irá provocar um uso excessivo de estratégias compensatórias aumentando a probabilidade de existir um output de dor nessa zona ou até mesmo uma lesão (E por isso se diz que muitas vezes a zona de dor é a vítima e não o vilão. (Hélder Borges, 2021)).

Mas não nos podemos esquecer que a dor ou lesão são fenómenos multifatoriais e complexos (Imagem 1), sendo praticamente impossível encontrar a origem da mesma. Ela pode surgir de maus hábitos, de questões emocionais como o stress, da história motora da pessoa, de crenças relativas ao movimento. E por isso é essencial uma abordagem multidisciplinar e integrativa no processo de reabilitação da dor.

Tabela Lombar 2

Mas este artigo é direcionado ao movimento e por isso, deixo-vos 5 coisas que podemos e devemos ter em conta nestes processos:

1) A ligação entre o organismo e ambiente
2) O conceito de Mostability
3) Desaceleração e a eficiência/eficácia do movimento na zona de transformação
4) A variabilidade e a robustez motora
5) Respiração e a linha fascial anterior profunda

1) O centro fundamental da ação, seguindo a teoria gibsoniana, é a organização/perceção das propriedades do ambiente (affordances) e como estas restringem/direcionam o nosso comportamento motor.

E, por isso, o mutualismo organismo-ambiente é uma das relações mais importantes para entendermos como o ser humano se movimenta e que tipo de soluções são encontradas para solucionar um problema.

Estas soluções são apresentadas após 2 processos, as sensações e as perceções (faladas em cima). Sensações são todas as informações captadas pelo nosso sistema nervoso (as aferências) e tudo aquilo que o sistema nervoso processa mediante essas sensações e escolhe, de forma auto-organizada, qual a melhor solução é a perceção.

Ou seja, compreender/analisar as soluções que o nosso sistema apresenta é um ponto essencial para perceber constrangimentos que podem influenciar a dor lombar ou qualquer outro tipo de dor, e a partir dai definirmos a nossa estratégia de intervenção.

2) Segundo o modelo Joint by Joint Approach (Cook, G. & Boyle, M. 2007), cada articulação tem uma função primária (Imagem 2), e a falta dessa função irá afetar o funcionamento principalmente das articulações subjacentes por estratégias compensatórias.

Um exemplo disso será que a falta de mobilidade na zona torácica ou da anca pode comprometer a estabilidade funcional da zona lombar e consequentemente originar um output de dor. E assim sucessivamente.

Tabela Lombar 2

Esta visão é um excelente ponto de partida. Mas como percebemos, um sistema complexo não funciona por partes, mas sim tem em conta que o todo é maior que essas partes. Ou seja, as diferentes estruturas/tecidos/sistemas são interdependentes. E, para complementar um pouco esta visão, o Gary Gray do Gray Institute, fala-nos do conceito de Mostability. Onde nos diz que, apesar de uma articulação poder ter uma ação primária, todas precisam de estabilidade e mobilidade, e todas precisam de estar preparadas para usar essas funções na apresentação de uma solução motora e serem capazes de interagir entre elas

Ou seja, todas as estruturas precisam de apresentar um bom nível de meta-estabilidade (Ver definição no glossário abaixo).

MUITO IMPORTANTE: estabilidade não é sinónimo de contrações voluntárias máximas ou ideais na execução de um exercício. Mas sim sinónimo de que a estrutura é capaz de lidar com as exigências do ambiente e que apresenta flexibilidade motora (capacidade de encontrar soluções de diversas formas).

3) Zona de transformação é uma sequência de movimento que revela a capacidade do corpo humano, a sua mobilidade e estabilidade, onde os propriocetores são estimulados ao máximo e os músculos têm de desacelerar e TRANSFORMAR o movimento, indo literalmente para outra direção. É uma reação do corpo como uma cadeia (Conceito de Chain Reaction do Gary Gray, Gray Institute).

É o momento do “load to explode”, que nos indica a importância de ser capaz de desacelerar um movimento e transformá-lo/acelerá-lo para o lado oposto ou outra direção qualquer.

Esta fase do movimento é essencial não só para detetar e compreender as estratégias compensatórias do nosso sistema, mas também para incluir nos nossos treinos e dos nossos alunos. Pois um sistema que se sente seguro para desacelerar um movimento irá libertar mais graus de liberdade para explorar soluções, o que leva a um aumento da flexibilidade motora do mesmo, que sabemos ser um conceito essencial para o output de dor (Ideia abordada no próximo ponto).

4) Variabilidade e Robustez Motora representam 2 conceitos essenciais para o nosso movimento.

A Variabilidade indica basicamente a capacidade do nosso sistema encontrar soluções através de diferentes caminhos, onde uma estrutura participa em diferentes soluções (degenerância) e onde uma solução é encontrada por diferentes estruturas (redundância).

A Robustez indica basicamente a capacidade do nosso sistema se manter meta estável. Regularmente somos expostos a perturbações/flutuações (por exemplo, imprevisibilidade de um impacto num jogo de futebol), que nos afastam do nosso ponto de equilíbrio (Estado atrator) e é essencial que sejamos capazes - através de processos de auto-organização orientados para o contexto - ou de voltar para o estado atractor anterior, ou de encontrar um novo.

A ciência mostra-nos que indivíduos com dor lombar têm a sua variabilidade motora afetada, levando-nos à importância da sua abundância (em níveis ótimos e não exagerados) no controlo motor. A capacidade de lidar com perturbações é essencial para a homeostasia (equilíbrio) do sistema e, por isso, faz todo o sentido ter em conta estas variáveis no design do treino.

5) A respiração pode ser um dos pontos iniciais a serem trabalhados no que diz respeito à dor lombar

Segundo Myers o nosso sistema é composto por 12 meridianos fasciais. Esses meridianos permitem o funcionamento do sistema em cadeia através de passagens de informação e transferência de força entre músculos.

Um desses meridianos é a linha fascial anterior profunda com um papel fundamental no suporte e sustentação corporal. Sabemos também que esta linha tem uma ligação direta com o diafragma e daí a importância do trabalho de respiração diafragmática em qualquer processo de reabilitação.

Se o objetivo do sistema é manter-se em equilíbrio, seguro e sem dor, esta é uma das estratégias mais importantes a ter em conta, pois percebemos que a ação do músculo diafragma acabará por ter uma participação essencial no movimento e na dor a nível macro devido à sua ligação com a linha fascial anterior profunda.


Conclusões

É importante compreendermos que sistemas complexos apresentam soluções não-lineares, que estas surgem através de processos de auto-organização e que o todo é maior que as partes. Isto acontece seguindo a premissa da causalidade circular onde a interação das variáveis micro vão influenciar o resultado macro e vice-versa. Logo, a origem de uma dor pode advir de diversos fatores, necessitando assim de uma abordagem holística e complexa para com ela. É importante trazermos para a nossa prática conceitos e estratégias que nos ajudem a realmente trazer resultados a curto, médio e longo prazo nas nossas vidas. Partilho contigo algumas das estratégias que podes trazer para o teu treino e não te esqueças de acompanhar os nossos artigos e as nossas redes sociais para entenderes o que fazer noutros pilares da tua vida.

Estratégias para o Movimento:

1) Procura enfatizar a sobrecarga coordenativa e não só mecânica.
2) Aumenta (tendo em conta sempre as restrições internas do sistema em causa e externas da tarefa) a variabilidade e imprevisibilidade do treino
3) Evita definir padrões de movimentos como certos e errados. Podes estar a criar fobia e consequente rigidez no movimento.
4) Desenha contextos de treino que promovam a resolução de problemas.


GLOSSÁRIO
Affordances:

Externas, são características do ambiente que nos direcionam para o que não podemos fazer, deixando em aberto a solução para realizar a tarefa… São oportunidades de ação.

Exemplo: Uma porta com a informação de empurrar orienta-nos para essa mesma ação, no entanto não nos diz exatamente como empurrar.

Internas, dizem respeito aos constrangimentos internos (por exemplo, deficiente estratégia pré-flexa dos músculos ao redor da anca), que nos dizem aquilo que o nosso sistema não será capaz de fazer e que permitem através de estratégias de auto-organização encontrar a melhor solução possível para aquela tarefa.

NOTA: Devido à interdependência/ligação entre todos os sistemas, o nosso corpo já conhece todas as suas limitações e apresenta as soluções ao ambiente externo tendo em conta as condições do ambiente interno e a nossa habilidade motora.

Auto-organização e Estados Emergentes

Estratégia de organização dos sistemas complexos. Diz-nos que muitas das vezes a solução apresentada pelo nosso sistema não tem um comando central, mas sim uma adaptação automática às caraterísticas emergentes do ambiente tendo em conta os nossos constrangimentos internos.

Exemplo: Mudança do tipo de piso numa caminhada não é “pensada”, o corpo adapta-se automaticamente à troca com as capacidades que já tem.

Meta-Estabilidade

Para o nosso sistema, pequenos desafios de equilíbrio podem ser facilmente compensados por mecanismos de controlo motor inconsciente (processos de auto-organização). Ele percebe que o seu estado de movimento é estável, mas no fundo o seu estado de equilíbrio é de facto metaestável.

Para grandes desafios de equilíbrio, o nosso sistema pode entender que o seu movimento é instável enquanto se aproxima periodicamente de estados instáveis de equilíbrio. Mas com esta informação este irá procurar de forma imediata um novo estado de equilíbrio, atingindo assim a meta estabilidade (capacidade de saltar de forma abrupta de estado para estado e manter um estado geral de equilíbrio na execução do movimento e consequentemente uma solução motora eficaz).

Atratores e Flutuações

Resumidamente, atratores são estados de equilíbrio, estados resistentes a um certo nível de perturbações. Essas perturbações que levam o sistema a manter-se se possível ou a encontrar um novo estado atractor são as flutuações.

É importante ter em consideração que o sistema deteta padrões atratores com mais facilidade se estes tiverem transferência para um maior número de tarefas, os chamados atratores universais, e que quanto mais fundo/robusto for esse atractor mais ele é resistente a perturbações/flutuações do movimento.




Bibliografia

- Hargrove, T. (2019). Playing With Movement: How to Explore the Many Dimensions of Physical Health and Performance.
- Davids, K., Hristovski, R., Button, C., Passos, P., Araújo, D., & Serra, N. (2014). Complex Systems in Sport. Routledge.
- Bosh, F. (2015). Strength and Coordination: An Integrative Approach.
- Myers, T. (2014). Anatomy Trains, Myofascial Meridians for Manual and Movement Therapists, 3e.
- Kibele et al. Stable, Unstable, and Metastable States of Equilibrium: Definitions and Applications to Human Movement. Journal of Sports Science and Medicine (2015) 14, 885-887.
- Liew, Bernard X. W. et al. Infuence of low back pain and its remission on motor abundance in a low load lifting task. https://doi.org/10.1038/s41598-020-74707-4 (2020).
- N. Stergiou, L.M. Decker. Human movement variability, nonlinear dynamics, and pathology: Is there a connection? Human Movement Science 30 (2011) 869–888.

Nuno Bessa

O Nuno é CEO e Integrative Trainer do The Integrative Spot. Já interveio de forma direta na evolução de mais de 100 pessoas, desde serviços de Personal Training a acompanhamento online.